sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Não seja mais um

     

     Numa sociedade insana, em tempo, sem olhos de ver e ouvidos de ouvir, o prejuízo no inconsciente dos que fazem a atual geração é e continuará sendo intenso. Tudo porque somos treinados para sermos lógicos e objetivos. Não desenvolvemos quaisquer habilidades para lidar com o território da emoção.

     Pouco a pouco, deixamos nossa condição de seres humanos únicos para nos tornarmos órgãos doentes que, por consequência, precisamos nos submeter aos exames e não ao diálogo. Assim mesmo, tudo tecnicamente, lógico, objetivo, seco. Hipócrates, pai da medicina, se remoeria em seu túmulo se soubesse que uma das mais belas e importantes ciências está se submetendo ao cárcere da economia de mercado.

     Certa vez ouvi um diálogo interessante retirado de um áudio-book do Cury, relatando um factóide ocorrido durante uma aula de anatomia. Era uma sala com diversas mesas alvas de mármore, nas quais 12 corpos estavam deitados, rígidos, com o peito e a face voltados para cima. Os corpos seriam objeto de estudo para a vasta turma caloura do curso de medicina, que conhecera ali pela primeira vez, a realidade nua e crua do sentido da vida. Era o espelho da existência humana. Vislumbraram que a vida é tão vasta e ao mesmo tempo tão efêmera, tão complexa e tão frágil.
     Dado início às atividades na aula, o professor - notável médico com diversos artigos publicados em revistas de renome internacional - se viu interrompido diante de um aluno que subitamente levantou a mão, por vezes ignorado durante todo o discurso do professor, até que este resolveu lhe conceder a palavra.
     - Qual é o nome das pessoas que vamos dissecar? perguntou o aluno.
     Obviamente, num torpe balbucio de reprovação, o professor proferiu algo do tipo: "Sempre há algum estúpido na turma. Esses corpos não têm nome!"
     Em meio ao constrangimento do aluno perante seus colegas de turma, ainda lhe sobrou intrepidez e determinação para emendar:
     - Como não têm nome? Eles não choraram, não sonharam, não amaram, não tiveram amigos, não construiram uma história? Como vamos penetrar no corpo de alguém sem saber nada sobre sua personalidade? Isso é uma invasão!
      O professor retrucou e, por vezes, abusou da sua autoridade dentro da sala em severos discursos constrangedores para o aluno, que se calou.

      Sempre procurei refletir até diante de factóides como esse e tenho a ligeira impressão de que SEMPRE há um preço a pagar para os que querem pensar. Na vida é muito mais confortável silenciar-se, seguir o cortejo e ser mais um na multidão. Todavia, o conforto de calar-se nos acarreta uma dívida imensurável com nossa própria consciência.
     Temos de fazer uma escolha. Quem tiver ouvidos de ouvir, ouça.

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